De que vale a vida,
penso eu, se não arriscarmos, nos entregarmos ao novo? Ter o coração partido e
se fechar para um novo amor, permanecer num emprego que te causa infelicidade,
mas que garante estabilidade, dormir cedo sempre, nunca se atrasar, ir ao mesmo
cinema, frequentar as mesmas praias, estranhar novas amizades: que perda de
tempo. Toda revolução sofre um pouco de resistência no inicio - mesmo que a
revolução seja mudar de cafeteria ou de marca de sabão em pó - mas pequenas
ações podem resultar em mudanças positivas na nossa vida.
Seu Jorge já
cantarolava, abençoado por uma melodia de Chico Buarque: "Todo dia ela faz
tudo sempre igual/ me sacode às seis horas da manhã/ me sorri um sorriso
pontual/ e me beija com a boca de hortelã". Ambos os amantes não pareciam
incomodados com a rotina que o casal compartilhava, e a composição não deixa
transparecer qualquer desconforto com o cotidiano previsível. Mas e se ela o
acordasse um pouco antes para cobrir-lhe de beijos com gosto de... Maçã? Se não
sorrisse ao acordá-lo, mas o pegasse desprevenido com cócegas que o fizesse
perder o ar de tanto rir? E se ele faltasse no trabalho, um dia que seja, para
brindar a vida na companhia da amada?
Gostar de rotina não é
algo ruim. Precisamos dela para nortear nossas vidas, dar linearidade ao nosso cotidiano,
nos tirando do caos e auxiliando-nos a dar foco às metas. A rotina é a nossa
cura da ressaca, nosso mais do mesmo que precisa existir, nossa obediência às
regras, nossa submissão ao tempo, nossa dose de normalidade diária.
Sair da rotina, do óbvio,
é um tanto doloroso para algumas pessoas. Arriscar-se numa atividade nova,
atrasar-se mais que cinco minutos, um feriado no meio da semana (acredite: há
quem não goste nem um pouco de feriado que tire da mesmice de uma semana de
trabalho) nem sempre é fácil de encarar. Ainda mais pra quem trabalha com o
método da agenda: acordar às seis, ler as notícias acompanhado de uma xícara de
café - nem muito quente, nem frio, nem morno: acertar o ponto todas as vezes é
crucial e rotineiro, por assim dizer - tomar um banho rápido, vestir-se e
chegar no trabalho às oito. Nem sete e cinquenta e dois, nem sete e cinquenta e
nove, muito menos oito e um. Oito. Trabalhar incessantemente, voltar pra casa
(pelo mesmo caminho de sempre), assistir qualquer porcaria na televisão,
dormir. Fim de semana é almoçar na mãe, ir ao cinema, voltar antes que escureça
dormir.
Pessoas assim não se
permitem experimentar algo novo e ousado, por mais simples que seja. Por mais
que a mídia tenha explorado e criticado positivamente aquela peça que está em
cartaz todas as quartas, não é digno se dar ao luxo de fazer um programa
cultural em plena quarta-feira. Amanhã é quinta, dia de labutar. Às oito em
ponto. Por mais que delivery de pizza seja prático, rápido e barato, não custa
nada explorar os demais restaurantes da cidade, levar a garota ou o garoto para
degustar sushi, comida chinesa, tailandesa, ou churrasco gaúcho, que seja. Algo
que não venha engordurado dentro de uma caixa de papelão
.
Há quem não goste de
acampar na praia mas que nunca sequer dormiu dentro de uma barraca e protege-se
dos pés à cabeça do sol, da areia e da água salgada que resseca e quebra o
cabelo. Tem gente que detesta balada, porque sempre frequentou a mesma casa
noturna, que conta sempre com a presença dos mesmos Dj's, sempre com as mesmas pessoas. Há quem não
goste de beber, mas que nunca bebeu, que não goste de redes sociais e que
sempre conservou a velha conta de e-mail no Bol., que não goste de chuva mas
que nunca sentiu a deliciosa sensação da água refrescando o corpo num dia de
calor infernal, que não gosta de música brasileira mas que nunca se arriscou a
ouvir os mestres da MPB - e que, inclusive, critica ferozmente o nosso funk mas
que dança de forma frenética ao som do pop e do Hip Hop americano que faz
apologia às drogas e ao sexo, com letras tão "proibido nas" quanto as
do ritmo carioca.
De que vale a vida,
penso eu, se não arriscarmos, nos entregarmos ao novo? Ter o coração partido e
se fechar para um novo amor, permanecer num emprego que te causa infelicidade
mas que garante estabilidade, dormir cedo sempre, nunca se atrasar, ir ao mesmo
cinema, frequentar as mesmas praias, estranhar novas amizades: que perda de
tempo.
Durante muito tempo fui
um pouco assim, e confesso que ainda sou paranoica com horários e rotina, mas
estou tentando mudar. Reconhecer que a minha bolha é limitada e que a zona de
conforto não nos oferece nada mais que conforto é o primeiro passo. Toda
revolução sofre um pouco de resistência no inicio - mesmo que a revolução seja
mudar de cafeteria ou de marca de sabão em pó - mas pequenas ações podem
resultar em mudanças positivas na nossa vida.
Se o café está bem
quente, eu acho bom. Se estiver morno, me incomodo um pouco, mas engulo feliz. Se
tiver suco, agradeço: mais um dia sem cafeína. Viver metodicamente é não viver,
ou viver pela metade. Você por acaso sabe se existe vida após essa aqui? Melhor
não desperdiçar. Hortelã pode ser bom, mas há uma infinidade de sabores por aí.
Obvious
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