É um erro acreditar que
a experiência de se relacionar superficialmente irá gerar experiência para um
relacionamento duradouro. Relacionar-se superficialmente ensina a ser cada dia
melhor nisso, enquanto a experiência de fazer durar só se adquire fazendo
durar.
Somos tão livres como
nunca fomos. Pode-se escolher carreira, viagens, hobbies, pessoas. Acima de
tudo pessoas. Pode-se trocar de carreira, de hobbies e de pessoas, o tempo
todo. Por que o resultado disso não é maravilhoso? Por que os cidadãos da era
tinder são tão solitários? Por que os pregadores do desapego nas redes sociais
parecem tão felizes e divertidos por lá e na realidade estão em desespero,
viciados em remédios? E de onde foi que eles saíram?
Estas pessoas são
solitárias, não por que não socializem, não saiam com os amigos, não se
divirtam. Elas fazem tudo isso e ainda têm um tinder que bomba. Mas não criam
laços. Todas essas coisas e pessoas (excetuando um bom amigo ou outro) são
efêmeras e desaparecem quando se está doente ou sem dinheiro. Puf!
O trabalho do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman nos emprestou as palavras para falarmos desse fenômeno
social que estamos vivendo.
As explicações sobre a
atual liquidez de tudo vieram a calhar, para aqueles que têm a coragem de
admitir e que têm interesse no que se passa ao nosso redor. Em trabalhos como:
“modernidade líquida” e “amor líquido” encontram-se temas chave que nos ajudam
a nos situar no caos moderno. Tais como: a perda de espaço e tempo implicados
pelo avanço tecnológico, a fragilidade dos laços humanos, a substituição de
relações presenciais por on-line e etc.
Mas este artigo não é
para falar de Zygmunt e sim para entendermos através do embasamento que seu
trabalho nos oferece, como nos tornamos fabricantes de solidão e legitimadores
da mesma.
Quando falo do que
“vivemos hoje”, não é por empatia com tempos passados, falo do fenômeno social
ocorrido como consequência de avanços tecnológicos e culturais, principalmente
a ideologia moderna da “liberdade”. A ideia de ser livre e de poder fazer o que
quiser, a desconstrução de valores, que agora são extremamente relativos.
Você começa uma família
se quiser e quando quiser, você tem filhos se quiser, você viaja para onde
quiser, você não precisa se relacionar com o sexo oposto, você é livre! Estamos
todos inseridos na cultura do respeito às diferenças. E tudo isso são avanços
inegáveis, mas ainda não estamos no paraíso por quê?
Todos os nossos avanços
vieram acompanhados de evoluções tecnológicas que nos tiraram a noção de espaço
e tempo interligados, como disse Bauman: “O tempo se tornou dinheiro depois de
se ter tornado uma ferramenta (ou arma?) voltada principalmente a vencer a
resistência do espaço: encurtar as distâncias, tornar exequível a superação de
obstáculos e limites à ambição humana.” (BAUMAN, Modernidade Líquida, 2001,
p.130)
Está dada a largada
então, para a conquista de espaço no menor tempo possível e os competidores
são, as um dia crianças, ensinadas que podiam ser o que quisessem. E isso é o
que importa agora, sucesso financeiro, aquisição de espaço, ambição. Laços de
afeto e a espiritualidade são complementos necessários na vida de um cidadão
moderno, saudável e bem-sucedido, mas apenas complementos. E é muito bom que
todos tenham esses complementos, assim como carimbos no passaporte. E o ideal é
que sejam colocados em um futuro seguro e incerto (porque nada é certo), onde
não possam afetar suas prioridades de carreira e dinheiro.
É preciso um espaço só
seu para se concentrar nas prioridades, para focar e competir no dia a dia com
máxima eficiência. Cria-se uma bolha.
E de dentro das bolhas
do individualismo olha-se para fora, para uma imensidão de possibilidades. As
redes sociais disseminam a sensação de que há uma infinidade de pessoas a nossa
volta, todas legais e felizes, tentando parecer mais bonitas e mais felizes que
outros. Todas postando seus momentos de alegria e sucesso. Cria-se um ideal
inalcançável, pois é atualizado o tempo todo nas redes. Então cá no nosso dia a
dia como escolher alguém?
Com uma escolha feita
parece-se estar perdendo tanto! Como amar alguém e perder as experiências
maravilhosas com as pessoas maravilhosas que lotam o facebook e o instagram?
Além disso, as pessoas
presenciais são humanas e falhas, dão trabalho e nunca correspondem ao ideal
disseminado pelas redes. E aí é que são descartadas e trocadas por outras.
Sempre na compulsão de tentar de novo, de achar a pessoa certa, que “cabe no
sonho”, como disse Cazuza. É muito fácil dizer que não deu certo e se
desprender de responsabilidades na tentativa, dizer: “é a vida”.
E volta-se para casa só
e começa-se tudo de novo amanhã.
Fazemos-nos todos
descartáveis e reclamamos quando somos descartados, reclamamos da solidão
dentro da bolha. Coloca-se a culpa num mundo louco e insensível, quando nós
somos o mundo. E a coisa real que todos compartilhamos no fim das contas é a
solidão. Ninguém está realmente lá, todos estão indo e vindo. Bauman explica o
fenômeno dos laços frouxos e repetitivos que fazemos:
O cidadão de nossa
líquida sociedade moderna — e seus atuais sucessores são obrigados a amarrar um
ao outro, por iniciativa, habilidades e dedicação próprias, os laços que
porventura pretendam usar com o restante da humanidade. Desligados, precisam
conectar-se... Nenhuma das conexões que venham a preencher a lacuna deixada
pelos vínculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da permanência.
De qualquer modo, eles só precisam ser frouxamente atados, para que possam ser
outra vez desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenários mudarem — o que,
na modernidade líquida, decerto ocorrerá repetidas vezes. (BAUMAN, Amor
Líquido, 2004, p.6)
As consequências da
liberdade são assustadoras. Ela é um fenômeno que a maioria ambiciona entender,
uma fonte de prazeres e dores de que ninguém abre mão. Talvez todos pensem
entender a liberdade, pois têm um conceito individual da mesma, mas ela está
acima das ideias.
A liberdade é acima de
tudo ambígua. Zygmunt diz que nenhuma sociedade conseguiu ainda o equilíbrio
entre segurança e liberdade, se estamos seguros somos escravos e se estamos
livres, não temos segurança. Estamos mais para o segundo caso, somos livres,
mas temos tudo líquido a nossa volta, nada seguro.
E quem vai ter a
coragem de construir um relacionamento seguro abrindo mão da sua liberdade
pessoal? Esta pseudo-liberdade de fazer tantas coisas que não darão frutos e
que oferece momentos de inserção na ideia atual de felicidade.
E ainda, quem serão os
mais que corajosos a investir em algo sólido, com laços afetivos, confiança,
lealdade e durabilidade, com dores e prazeres a longo prazo, quando o resto do
mundo irá considerá-los fora de moda e sem ambição?
Talvez, por isso, é que
nem mesmo pessoas totalmente conscientes dessa realidade conseguem criar laços
duradouros, afinal, é suicídio social ser fora de moda e sem ambição.
E como diz Bauman: “Sem
humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas
enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não mapeada. E
é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres
humanos.” (BAUMAN, Amor líquido, 2004, p.12).
Como já foi dito, os
planos de formar família ou mesmo um relacionamento duradouro são colocados num
futuro incerto e distante, “vou querer quietar um dia”, ouve-se muito isso. As
pessoas acreditam estar aprendendo com suas experiências de amores líquidos,
ficadas e rolos, para um dia aplicar a um relacionamento que já vem sendo
idealizado, mais inalcançável depois de cada experiência, obtida com pessoas
defeituosas, de forma que se exige mais e mais daquela que seria a certa.
É um erro acreditar que
a experiência de se relacionar superficialmente irá gerar experiência para um
relacionamento duradouro. Relacionar-se superficialmente ensina a ser cada dia
melhor nisso, enquanto a experiência de fazer durar só se adquire fazendo
durar. Sobre isso Bauman diz:
Essa é, contudo, outra
ilusão... O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos
amorosos é o conhecimento do “amor” como episódios intensos, curtos e
impactantes, desencadeados pela consciência a priori de sua própria fragilidade
e curta duração. As habilidades assim adquiridas são as de “terminar
rapidamente e começar do início” [...] Guiado pela compulsão de tentar
novamente, e obcecado em evitar que cada sucessiva tentativa do presente pudesse
atrapalhar outra no futuro... (BAUMAN, Amor Líquido, 2004, p.11)
Toda essa cultura e
essa vivência de correr atrás do vento fabricam solidão e não daquele tipo que
se precisa de vez em quando, mas de um tipo disfarçado e disseminado, que está
nas nossas músicas e filmes, está nas redes e na moda, está no estilo de vida e
tem corroído por dentro a fé da humanidade na humanidade.
Quem não viu o primeiro
episódio do famoso seriado Americano, Sex And The City, baseado no livro de
Candace Bushnell? A narração de Carrie Bradshaw que abre o seriado:
Bem-vinda à época da não
inocência [...] Autopreservação e fazer bons negócios são mais importantes. O
cupido voou do pedaço. Como diabos vieram parar nessa bagunça? Há milhares de
mulheres nessa situação, todos as conhecemos e concordamos que são ótimas. Elas
viajam, pagam impostos, pagam 400US$ em um par de sandálias Manolo Blahnik e
são solitárias.
Quem não viu o filme
Her, e acompanhou a maneira fácil e a gradual com que o personagem Theodore se
apaixona por um programa de inteligência artificial, chamado Samantha, criado
para ajudar usuários a se organizarem em suas vidas online? A ex-esposa de
Theodore diz a ele:
É o que você sempre
quis. Ter uma esposa sem o desafio de ter que lidar com algo real.
Se quisermos alterar
essa realidade, será preciso parar a corrida em diversos momentos e olhar para
o outro, desobrigando-o de ser fantástico, pois ele não é um filme ou seriado,
é um ser humano. E o outro ser humano é o único que pode corresponder com a
companhia que nós, por natureza, necessitamos.
Desculpe, também não é
seu cachorro!
Obvious