A questão é simples e
complexa, segundo os budistas: amor de verdade não dói. Ele inunda o coração e
se basta sozinho. Já o apego traz sofrimento, porque guarda dentro de si o medo
da perda. Da rejeição. De "ficar sem a pessoa", de "ficar sozinho".
O amor não pode ter medo de perder porque não perde nunca – ele existe
indiferente da reciprocidade. Existe em si mesmo.
Desde pequenos fomos
ensinados a pensar em amor e apego como quase sinônimos, e a encarar com alguma
benevolência um ciúme "saudável", ou o medo de perder o amado (a)
como prova de que realmente o que se sente é amor. Séculos de literatura, arte
e poesia na nossa sociedade ocidental nos moldaram a pensar assim – isso desde
as dores do amor romântico do jovem Werther, passando por Lady Gaga, até os cantores atuais da sofrência. Os
budistas lidam melhor com a questão – recomendo palestras do Dalai Lama e da
monja Jetsunma Tenzin Palmo sobre o tema. Fácil de achar no you tube.
Sou claro, eu, como a
maior parte dos mortais, compreendo racionalmente a diferença entre os dois
sentimentos – mas daí a separar apego e amor dentro do coração é outros
quinhentos. Lembro-me de ouvir palestras e ler sobre o assunto e literalmente
passar por cima dele – afinal, eu entendia a ideia, mas não via como colocar em
prática. Era abstrato demais. Algo que só pessoas muito evoluídas
espiritualmente ou com décadas de análise talvez pudessem sentir. Mas não. Um
dia aconteceu. E foi num sonho.
Parênteses: Alguns dos
nossos melhores insights vêm nos sonhos – não levante correndo para engolir um
café e correr para o escritório. Tire pelo menos uns 5 minutos para ouvir o que
o seu mundo interno tem a dizer quando você dorme e a consciência relaxa.
Anos depois de um
término, sonho que recebo uma carta. Uma embalagem com carimbo e selo de algum
país distante. Abro o pacote e encontro um casaco cinzento e antigo, com
bandeirinhas, selos e brasões de vitórias passadas. Dentro, uma foto minha. E
um poema, numa letra e língua que não consigo entender.
No sonho, vestida com
aquele casaco de tantas guerras, percebia que era eu quem ele buscava. A pérola
invisível, escondida no conteúdo translúcido da concha. E que ele, debaixo de
tantos brasões e realizações, de tantas máscaras a que a vida nos obriga a usar
para vencer no mundo, também era. The real deal. O czar medroso, generoso e
puro que se esconde por trás da armadura, para não doer mais. É, mas não sabe.
Nem quer saber. Quando irá acordar, meu deus?
Nunca – diz meu
coração. E de repente me sinto aliviada, sem aquele peso. Porque não preciso de
mais nada. O que sinto é suficiente – e enorme o bastante para me fazer querer
viver muito mais. Ainda no sonho, passo por aquela rua, aquela casa. Fecho as
janelas do táxi, fecho os olhos. Deixo ir.
Estou na praia,
sozinha. Observo as ondas à noite e contenho meu desejo de me fundir ao céu e
mar noturno. Entre os dedos seguro uma, duas, três conchas – as mais bonitas
depois da ressaca. Com cada uma delas pesando suave na mão, espero pelo dia em
que possa entregar a dele – o amuleto que o protegeria do mundo cão em que ele
(sobre)vive. Esse dia não vai chegar, olho para o mar e sei. Mas isso não muda
nada. Nem me faz querer nada que não seja pura oferta da vida, do mar. Do
mundo.
Querer, querer. Só
queremos. Queremos ter tudo – e vivemos presos no medo de perder o que
"conquistamos". Escuto as ondas indo e vindo e me sinto livre – ainda
estou inteira. Cada vez mais. Nossas memórias passam pelo espelho das águas
como flashes, mas não trazem saudade – o tempo-espaço é acessível a qualquer
fechar de olhos. A cada onda que se quebra no horizonte.
Os budistas dizem que o
todo sofrimento vem do desejo (não sou budista e ainda não atingi o nirvana
para interpretar corretamente essa frase), e que o caminho para sair da prisão
do apego e da dor é deixar ir. Aprender a se bastar. E ficar genuinamente feliz
com o crescimento do outro – mesmo que ele tenha escolhido viver longe de você.
Fácil falar, não é? Mas
eu juro que num segundo, dentro de um sonho, foi fácil – e a partir daí foi
ficando cada vez mais natural.
Porque amor de verdade
não precisa do outro. Afinal, o outro está sempre contido dentro do amor. Não
como um fantasma – mas como uma constância que faz nosso coração bater mais
rápido em cada respirar de maresia, em cada linha de um poema. E não, não dói.
A felicidade do outro passa a ser sua também, porque é impossível sentir algo
que te completa e expande tanto e ser mesquinho, querendo aprisionar o que só
existe quando há entrega – e para haver entrega é preciso haver liberdade.
Amor de verdade é
gratuito e autossuficiente, eterno no tempo como uma onda sonora que se propaga
infinita, repercutindo no espaço. No espaço, em algum lugar, nós. Lembra?
Não, você não lembra.
Mas não faz mal. Eu lembro por nós dois.
Obvious
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